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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Ponha-se No Meu Lugar

Eu quero começar esse texto dizendo que é chato ter que falar sempre sobre isso, mesmo fazendo pouco tempo que tenho me dedicado realmente à causa. É chato porque é triste e dói. Quem gosta de sofrer? Mas entendi que assim é a luta, insistente, persistente, repetitiva e a cada repetição espera-se que alguém ouça e entenda a mensagem para que tudo faça sentido. A luta é em nome de todos que sofreram - na pele - antes de mim, por aqueles que ainda não entendem que vão sofrer e para que algum dia ninguém mais sofra. A luta racial é uma opção, mas pode ser que a própria causa faça seus escolhidos e então você percebe que não há como ficar de fora porque você já está dentro dela e ela dentro de você.

Acho que não precisamos mais questionar se existe racismo no Brasil (apesar das negativas) e que mais importante é apontar as diversas formas nas quais ele se manifesta todos os dias. É algo institucionalizado, enraizado e que se propaga como uma herança, de geração a geração. O mais preocupante talvez não esteja nas pessoas que o expressam livremente, não que seja melhor, acontece que o veneno está disfarçado com aqueles que julgam não ter preconceito e o espalham em tom de piadas e "frases inocentes". Esses, tomam posse da herança sem nem se questionar de onde ela vem e o porquê de existir. E assim o racismo se cria, se sua existência não é explícita o seu combate é falho. Esses herdeiros crescem e não conseguem enxergar fora de seu próprio eixo, fora da sua realidade.

Com o advento do "Poste do Justiceiros", a internet foi tomada por diversas opiniões e pontos de vista, dos quais muitos poderiam ser renomeados de pensamentos racistas. Entramos, sim,  na questão (sócio)racial, no momento em que entre essas opiniões, o que se sobressaiu foi a afirmação: "É uma questão de justiça, não de racismo". No meio disso tudo, pessoas falam como se negros quisessem sempre o lugar de vítima e como se competissem pelo primeiro lugar no sofrimento. É bom que essas mesmas pessoas saibam que por trás de cada um existe uma história, inclusive, cada "marginalzinho" também tem a sua. Não há como saber a história de cada um deles, mas todas elas tem algo em comum, algo determinante a ponto de não permitir que esses jovens sejam chamados de "cidadãos de bem".

Crime é crime, quem o faz tem que ser punido. Mas pensar de uma forma tão rasa, faz da criminalidade um ciclo que não se encerra. Já que é melhor prevenir do que remediar, olhemos então a raiz dessa situação. Tem gente por aí dizendo que a maioria dos jovens assassinados são negros, porque a maioria dos bandidos também são. Isso nada mais é que do que tratar sintomas como causa do problema. Não sou especialista em nenhum dos temas que estou abordando, mas eu sou negra, sou mãe e sou pobre, características que me credenciam a falar de algo que eu vivo.

Nasci e vivi até os dezesseis anos na periferia da cidade vizinha à que moro atualmente. Nesse bairro, só existia calçamento porque os vizinhos se uniram e o fizeram por conta própria, o primeiro asfalto que a prefeitura colocou, foi-se embora com a água da primeira chuva. O ônibus tinha um intervalo de aproximadamente uma hora entre um horário e outro. Para se conseguir uma consulta médica no posto de saúde era e ainda é preciso ir para a fila de madrugada, ás 4 horas da manhã, ou até antes. Nunca estudei numa escola perto de casa, minha mãe queria que estudássemos (meu irmão e eu) numa escola melhor do que aquelas, onde o ensino era fraco, faltavam professores. Há cinco anos moro na maior cidade da região Sul Fluminense, também na periferia e a situação aqui não é muito diferente. No posto de saúde do bairro, há uma pediatra, quando ela está de férias, o substituto que deveria assumir o posto, não aparece. E as crianças ficam um mês sem médico, podendo contar apenas com atendimentos de emergência nos pronto-socorros da cidade, cinco no total. Se a necessidade de atendimento é num fim de semana, só se encontra essa especialidade médica em um ponto de atendimento. Já fiquei três horas num domingo aguardando atendimento para o meu filho e ali estavam crianças ardendo em febre, esperando há mais tempo que eu. E já esperei onze meses para fazer um exame de vista.

Se essa realidade parece ruim, eu tenho plena consciência que existem outras muito piores, elas estão aí nos noticiários o tempo todo, miséria vende jornal. Talvez eu não consiga imaginar como é crescer num lugar onde você convive com a violência, tráfico e polícia na porta de casa. Um lugar onde não há nenhum médico, nem saneamento, energia elétrica. Imagina como é não ter o mínimo para viver com dignidade... As pessoas que estão aderindo a campanha "Adote um bandido", com certeza não imaginam o que é, e nem ao menos querem conhecer para não perder a posse de suas verdades absolutas e muito menos tentar entender.

Eu finalizo me apropriando do clipe de uma música que fala sobre preconceito racial nas formas mais banais do dia-a-dia do negro. Querem nos culpar por sermos  vítimas e querem nos culpar por sermos vilões, mas nós não somos representados nem em uma embalagem de xampu. Além da mensagem da música, o clipe faz uma coisa que tod@s que sofrem/sofreram algum tipo de preconceito gostaria que acontecesse, que o outro estivesse no seu lugar. Pois é mais fácil julgar, acorrentar, perseguir e atear fogo, quando não se sente na própria pele, na própria carne.





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